quinta-feira, 15 de novembro de 2007

David já era...

...Mais comum que a mentira quando ainda mais novo que a sinceridade, infelizmente. Sua meia vida fora mais meio vivida até agora que a metade do que se possa imaginar. Todo o potencial para ser “mais um apenas” é colocado na nossa cabeça desde criança, pra andar na direção do gado, tocar no tom que a banda toca, olhar na direção que as mão se estendem. Se você vai acreditar que é realmente assim está só em você. David sempre acreditou. Seguiu todos os passos para ser um bom cristão e ser humano temente a Deus, não perdia uma missa, mesmo que o desagradasse ter que ser assim, era, e ele escondia sua indignação porque se Deus soubesse não valeria a pena. Mas... Deus sabe de tudo, mas mesmo assim ele conseguia contornar, por que parece que dá pra Deus não saber? Ele nunca disse isso a ninguém. Nem a ele mesmo. Enfim, ele rezou, trabalhou, arrumou dinheiro para ajudar em casa, amou pessoas do sexo oposto, claro, mesmo que ás vezes se sentisse muito atraído por homens, ele reprimiu isso também. Ele ficou muito bom nisso. Conseguia reprimir tudo que era ele mesmo. Só que um belo dia ele acordou e sentiu que já tinha acordado antes disso. Ele comeu (refeições sempre nas horas certas, todas as quatro) e já sabia o que ia comer de alguma forma. Ele se vestiu (roupas tão qualquer quanto qualquer coisa qualquer que possa ser qualquer coisa, feia, roupas comuns) já sabendo que roupa era, que cor, que toque, que cheiro. Ele saiu de casa pela saída que já sabia como era, mesmo não sabendo que tinha uma lata de lixo derrubada pelos cães, ele sabia. Ele chegou ao seu trabalho e já sabia que estaria atrasado, que lhe dariam uma chamadinha, o que engoliria, e o que diria, quando abriu a boca para falar pela primeira vez naquele dia, depois de horas acordado, ele sabia tudo que ia vazar dali. Ele não tinha o gosto de escutar a si mesmo, se não visse ninguém também não ouvia o som de sua voz. Afinal, não importava e falar sozinho é maluquice. Ele sabia o que ia ser o almoço. Ele sabia que o cachorro olharia pra sua cara implorando por um pouquinho, ele sabia que ia chegar cansado, sabia que caminho ia tomar pra escola a noite, que teriam pessoas no meio dele, que teriam cães, senhoras, carros da exata cor, e começou a se incomodar. Na hora de dormir sabia segundos antes de rolar pra um lado que ia rolar pra um lado. E sabia que ia começar a gritar feito desesperado e que sua mãe irromperia o quarto como uma louca, sabia que seu pai viria em seguida, sabia que continuaria a gritar até a mãe lhe dar um remédio pra ele dormir, e sabia como era a tontura antes de fazer o efeito. Só não sabia se estava vivendo as coisas duas vezes, com uma diferença de milésimos de segundos, pois era essa a real sensação, ou se estava adivinhando apenas. Quando acordou, segundos depois acordou. Quando se levantou, segundos depois se levantou. Era uma vida vivida duas vezes com diferença mínima de tempo. Foi infernal, ele recomeçou a berrar, mas viu que ia sair correndo agora, e saiu correndo agora, não viu mais sua mãe, nem seu pai, somente viu um rosto muito familiar, lindo, muito pálido e com olheiras bem profundas, já sabendo que ia vê-lo. E de repente tudo parou. E aquele rosto ele não conhecia. Ela se aproximou e disse: Agora você é meu, acho que deve vir comigo.

E ele surpreso por não ter previsto aquilo perguntou: mas... E a minha vida?

_Você perdeu, sinto muito.

_ Eu...

_ Sim.

_ Mas o que aconteceu comigo, porque eu não vi? Porque não houve um déjà vu dessa vez?

_ Se quer mesmo saber... aquele não era você, você já estava morto há muito tempo dentro daquele corpo – disse a morte apontando pra trás.

Antes de se virar e ver a ponte, a estrada lá embaixo, e seu corpo sangrando esparramado ele viu a ponte, a estrada lá embaixo e seu corpo sangrando esparramado.

Um comentário:

Anônimo disse...

vou te linkar IAEHIHAEIHEIHEIHE


Finais são bençãos ambivalentes.